sábado, 1 de agosto de 2015

Criado na CCB como mulher, Samuel Silva assume transexualidade

Desde o início deste ano, Samuel segue um tratamento hormonal com testosterona

Filho de pais crentes da Congregação Cristã no Brasil, Samuel Silva enfrentou todas as barreiras do preconceito. Diagnosticado como homem transexual,  ele nasceu biologicamente mulher, mas é psicologicamente homem.


Foram anos recebendo diferentes diagnósticos. Para cada doença, um remédio diferente. Bipolaridade, esquizofrenia e depressão. A única certeza que o psiquiatra de Samuel tinha era que havia uma justificativa médica para alguns cortes cujas cicatrizes ainda continuam visíveis em seus braços.

Certo dia, o especialista chamou a mãe do rapaz de lado e a alertou. “Existe alguma coisa presa dentro da sua ‘filha’. É muito grande, é muito forte. Eu não sei o que é. Mas vai chegar um dia que ‘ela’ vai soltar isso para fora e a notícia vai transformar toda a sua vida”.

Com aproximadamente 1,65 metros de altura, cabelo raspado com máquina dois, piercing na sobrancelha logo acima dos óculos que sobrepõe os olhos castanhos claros e um sorriso estampado no rosto. Samuel Silva, de 22 anos, é estudante do terceiro ano de publicidade e propaganda na Faculdade Cásper Líbero.

Ele faz parte dos 10% dos quatro mil transexuais que não se prostituem para sobreviver, de acordo com estimativa da Prefeitura Municipal de São Paulo.

Para formar um espaço online de desabafo e empoderamento, o jovem criou uma página no Facebook. A chamada “Um homem trans casperiano” tem como principal objetivo incentivar que os internautas mandem perguntas sobre o mundo trans, de forma anônima ou não, para serem respondidas por ele.

Samuel também é assessor de comunicação do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) e coordenador executivo do Fórum Paulista de Travestis e Transexuais.

Durante a infância, ele era uma criança como outra qualquer: jogava bola, soltava pipa, mas também brincava de boneca e de outras coisas ditas “femininas”. Como seus pais são evangélicos da Congregação Cristã no Brasil, ele e o irmão, dois anos mais novo, cresceram em um universo muito restrito com poucas informações a respeito de sexualidade.

No prédio em que viviam, na zona leste de São Paulo, havia uma “hierarquia” entre as crianças. Em um dia, enquanto brincavam de esconde-esconde na área de lazer do edifício com os meninos mais velhos, de cerca de 14 anos, Samuel afirma ter sido vítima de abuso sexual por parte de alguns deles. Na época, ele ainda adotava a identidade de gênero feminina. “A partir desse momento entendi que eu era diferente dos garotos e que não era bem-vindo nesse mundo masculino”, relata.

Os problemas começaram a se agravar no final do ensino médio na escola católica em que estudava, pouco antes do rapaz entrar para o curso de Publicidade e Propaganda da ESPM, faculdade na zona sul de São Paulo.

Em um período de dois anos, foram cinco internações em diferentes clínicas do Estado. Na última, teve o seu primeiro contato com uma mulher transexual. “Você ouve falar de travesti, aquele estereótipo de prostituição e só”, afirma enquanto relembra do encontro. “Homem trans eu nem sabia que existia, nem passava pela minha cabeça, era algo muito distante”, completa.

Era começo do ano de 2014 e nesta época Samuel já havia trancado o terceiro ano da graduação. A relação dos cortes com estiletes no braço para ‘punir’ o próprio corpo e aliviar o estresse emocional já estavam tomando outras proporções.

A amizade entre a mulher trans e o rapaz, que começou de uma conversa informal dentro da clínica, acabou se tornando a luz no fim do túnel para o estudante de publicidade. Após dois meses e meio de internação, ele saiu da clínica junto de alguns pertences que havia levado para lá, além de um pequeno pedaço de papel que mudaria a sua perspectiva de vida.

Com letras garrafais, a mulher havia indicado uma página no Facebook sobre o universo trans. “Quando eu comecei a ler os relatos dos homens trans desse grupo, eu me identifiquei completamente. Os discursos eram idênticos aos que eu tinha com relação ao meu corpo, aos meus sentimentos. Eu me vi naqueles rapazes e pela primeira vez na vida eu me identifiquei com alguma coisa e vi que não estava louco”.

Hoje, Samuel está economizando dinheiro para fazer uma mamoplastia masculinizadora (cirurgia de retirada das mamas). Enquanto não reúne a quantia suficiente, ele usa um "binder", faixa colocada no peitoral para esconder os seios.

Desde o início deste ano, segue um tratamento hormonal com testosterona, o que interrompe a menstruação, faz crescer pelos no rosto e no corpo, engrossa a voz e desenvolve os músculos. Também usa um pênis falso e roupas ditas “masculinas”.

No primeiro momento, a família teve dificuldades em aceitar a mudança, mas Samuel afirma que aos poucos eles começaram a ceder. “Eu acredito que tudo é uma questão de tempo. Meus pais, agora, estão começando a me chamar pelo nome social, pelo pronome certo. Eles estão se esforçando”. Enquanto isso, ele luta por seus direitos e de toda a comunidade trans.



Samuel planeja mudar o nome de registro no futuro, mas não quer alterar o gênero para não perder uma série de leis que protege as mulheres, como a Lei Maria da Penha. “Eu tenho um corpo vulnerável. Sou vulnerável ao estupro, agressão física. Não tenho garantia que essa lei me protegeria, caso mude o gênero. Não tem uma lei que proteja os trans”, afirma.

Assim conseguiu a transferência para o terceiro ano de Publicidade e Propaganda da Faculdade Cásper Líbero, região central de São Paulo, exigiu que todos o tratassem pelo pronome masculino e pelo nome social.

A página “Um homem trans casperiano" foi criada no início deste ano para que as pessoas possam entrar em contato com o mundo trans e interagir com Samuel. É um espaço de desabafo, militância e empoderamento.